Nei Lopes, poeta, músico e escritor fala sobre o continente africano e a africanidade brasileira.
Nei Lopes
“O elogio da mestiçagem tem sido um empecilho ao avanço dos direitos dos negros."
Rodrigo Elias e Vivi Fernandes de Lima
Nei Lopes está de bem com a vida. No sossego de seu sítio em Seropédica, a 75 quilômetros da cidade do Rio, ele pode dar vazão às múltiplas paixões que o movem. Compositor de samba, incansável pesquisador da cultura afro-brasileira e da história do subúrbio carioca, romancista, enciclopedista, e que também cultua orixás, nunca esteve tão produtivo.
Quase nada o tira do sério. A exceção: a resistência de alguns setores da sociedade às políticas de inserção social dos negros, sua principal bandeira ideológica. O debate público é acalorado, já rendeu acusações de racismo de parte a parte e foi um dos temas da conversa que tivemos com ele, num agradável encontro no sítio. Nei tem críticas de sobra à forma como a cultura negra é deixada de lado em nome de um “elogio à mestiçagem”, que, segundo ele, camufla a desigualdade racial ainda existente.
Afiado nas argumentações como é afinado na música, este é o resumo de sua formação. Caçula de 13 irmãos, foi o único a completar o primário e ir além: formou-se em Direito e chegou a advogar por oito anos. “Chateado” com a morosidade e a ineficácia do Judiciário, seguiu “naturalmente” o caminho da música, há décadas trilhado em sua família por tios e irmãos. Daí para escritor, livre-pensador, militante social e, agora, debatedor político.
Por onde quer passe, deixa marcas perenes. Do seu “terreiro”, o autor de obras referenciais como o samba “Senhora liberdade” e a Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana saúda a negritude e pede passagem.
REVISTA DE HISTÓRIA O carnaval ainda é uma festa negra?
NEI LOPES O samba é refém do racismo. Primeiro, sofreu um processo brutal de desafricanização. Estabeleceram um gueto para o que seria o samba africanizado, que é exatamente a escola de samba. Só que o gueto das escolas de samba foi desafricanizado também. Como diz um amigo meu, a sociedade brasileira conseguiu um negócio impressionante, que é criar uma cultura negra sem negros. As pessoas, de modo geral, não se dão conta disso. Pensam que escola de samba ainda é uma manifestação de cultura africana. Não é mais. O que havia de substrato africano no samba foi diluído. E o mais doloroso é que não há um carnaval em que esses supostos conteúdos africanos não sejam evocados pelas escolas de samba. Tem sempre uma coisa de orixás, de África, a África distante, esse é o chavão, não é? A África não está distante coisa nenhuma, a África está dentro da gente.
RH Não tem mais nem o samba de terreiro?
NL Não tem, porque a lógica é outra. Antigamente você entrava em um terreiro de escola de samba – que nem se chamava quadra, se chamava terreiro mesmo, exatamente como os da religião africana. Homem não entrava no terreiro, só mulher, como no candomblé, que hoje também não tem mais essa distinção. Até o sentido da roda do samba era o mesmo do candomblé: o sentido anti-horário. Era assim: tinha o puxador cantando, os compositores cantando, a bateria de frente, como é até hoje, mas no centro do terreiro ficavam as pastoras ensaiando. E elas rodavam como rodam as iaôs no candomblé. E tinha um diretor de harmonia no meio, coordenando aquilo. Qual era o objetivo? Era elas aprenderem o samba, fazerem o coro e dançarem de uma forma semelhante à que iriam apresentar no desfile na avenida. Hoje você vai a uma escola de samba e é um grande baile de carnaval. Apenas isso. Não tem sentido simbólico nenhum.
RH O Brasil está mais mestiço?
NL Eu discuto muito essa questão da mestiçagem, porque ela tem sido uma forma de negar a africanidade – “Não vamos discutir isso porque todos são mestiços”. Mas cadê a representação do lado africano dessa mestiçagem nos círculos de poder? Não tem. Quem repete isso com uma virulência cada vez maior é a “direita social”, Ali Kamel [jornalista, editor do jornal O Globo] e sua rapaziada, Demétrio Magnoli, etcétera e tal. O elogio da mestiçagem tem sido um empecilho ao avanço dos movimentos de direitos civis dos negros. E nem sei muito até onde vai esta mestiçagem, que a gente só vê na base da pirâmide. Não vê acima.
RH O embate sobre políticas para afro-descendentes está radicalizado?
NL Todos os que propugnam hoje pela inserção do negro acabam chamados de “racialistas”, para não dizer racistas. Escrevi um artigo no Globo esclarecendo que a exclusão do negro na sociedade brasileira após a abolição se dá basicamente em benefício dos imigrantes. O negro sai de cena, jogado fora, uma abolição com um artigo só – “Declaro extinta a Abolição no Brasil”. “E faz o que com eles agora?”, “Larga aí, eles se viram”. Nisso vêm entrando os imigrantes, recebendo subsídios, uma porção de coisas. Gilberto Freyre diz que os italianos foram os imigrantes mais paparicados da história do Brasil. A minha mulher é descendente de italianos. Citei isso no artigo. Rapaz, o Ali Kamel escreveu dizendo que eu era o [Jean-Marie] Le Pen [político francês de extrema direita] brasileiro. Para se manifestar a favor de qualquer coisa que seja “subversiva”, você tem que arcar com as consequências. Já fui discriminado também, isso é recorrente. Tem uma história muito engraçada da minha juventude lá no Irajá. Tinha um senhor, vizinho nosso, que me viu nascer ali. Quando eu me formei, ele começou a me chamar de doutor. “Doutor Nei, doutor Nei”. Bom, se ele quer chamar, deixa chamar. E quando larguei a advocacia e comecei a me dedicar à música, todo mundo ficou sabendo. Tem um clubezinho lá da vizinhança, fundado pelo meu pai junto com esse senhor, e houve uma divergência política meio acirrada. E esse senhor, no meio de uma discussão, me tratou de maneira meio ríspida, mal-educada. Eu reclamei e ele disse: “Eu o respeitava quando você era um doutor. Você agora é um sambista” [risos]. Engraçado isso, não é? É um preconceito social onde o etnorracial está embutido com tranquilidade.
RH A consciência quanto à origem étnica fez parte de sua formação?
NL Não, isso a gente adquire com o tempo. Inclusive eu fui desestimulado a ter essa consciência pelo fato de meus pais serem muito velhos. Meu pai é de 1888, nasceu antes da Abolição, e minha mãe nasceu em 1900. Para eles, era um assunto que não interessava. Como é que você vai querer pensar em afirmação negra em um contexto totalmente desfavorável, sabendo que isso não levaria a nada naquela época, só levaria para trás? Até bem pouco tempo, era ofensivo você dizer que alguém tinha ascendência africana. Em qualquer dicionário biográfico ou enciclopédia, a circunstância raramente é apontada. A não ser quando o cara se assume ou quando não tem condição de negar. Ou então quando você está querendo derrubar o cara: o Lima Barreto é sempre mostrado como mulato, talvez pelo fato de ter sido um outsider, com problema de alcoolismo e tal. Então, era “o mulato Lima Barreto”. Não era uma coisa que engrandecesse. A minha família não poderia agir de outra forma.
RH Como começou seu engajamento nessa questão?
NL Minha primeira mulher, a mãe do meu filho, era uma negra de família de classe média, com status econômico e social bem diferente do meu. Desde a década de 1950, seu pai e sua mãe frequentavam a questão étnica. Eu aprendi um pouco no convívio, percebi coisas que não percebia. Isso foi fundamental para mim. Conheci muita gente nessa época, negros que trabalhavam em atividades de cultura, o Teatro Experimental do Negro, a Orquestra Afro-Brasileira. Depois veio a coisa política mesmo, já na década de 70. Com a abertura política, pós-ditadura, as entidades negras se organizaram. A coisa tomou vulto, e eu comecei a ter um embasamento mais teórico. Porque não adianta ter só o sentimento; você tem que organizar isso na sua cabeça. Tem uma psicanalista famosa, negra [Neusa Santos Souza], que escreveu um livro chamado Tornar-se Negro. É isso: uma coisa que a gente se torna. É todo um processo até você se conscientizar. Hoje é muito mais fácil, a coisa já vem mais prontinha. A partir dos movimentos negros da década de 70, qualquer criança tem essa percepção.
RH Mas varia de região para região?
NL Muito. Na Zona Sul [do Rio de Janeiro] não existe cidadania em termos de cultura africana, a não ser, possivelmente, em algum núcleo de favela. É um sentimento mais forte no subúrbio, até pela circunstância numérica: você tem muito mais negros no subúrbio do que na Zona Sul. Seropédica tem uma população de 60% de afro-descendentes. Entre os absolutamente carentes, são 80%. Quanto mais afastado do centro, mais tem esse peso. É muito mais fácil, muito mais plausível, um negro suburbano ter consciência da sua identidade étnica do que um negro de outra região.
RH Qual o significado do subúrbio para você?
NL É a matriz da cultura carioca. A primeira freguesia do Rio de Janeiro ocupava um pedacinho do centro da cidade e ia, no máximo, até o atual Campo de Santana. A cidade era aquilo ali e o resto era o resto. Só que nesse resto, primeiro se constitui a freguesia de Irajá, onde, por felicidade, eu nasci, fui criado e tenho família até hoje. De Irajá é que nasceram Jacarepaguá, Campo Grande. Era o celeiro de abastecimento da Corte. Quando eu vou para o Rio, fico recuperando as coisas. Outro dia estava mostrando para a Sonia [sua mulher] um canal fétido, que você cruza quando vai pela Linha Vermelha, quase em frente ao Fundão: é o Canal da Pavuna, feito no século XIX para escoar a produção até o mar. É fundamental saber essas coisas. O que hoje é Gávea, Jardim Botânico, Lagoa, na Zona Sul, eram os subúrbios rurais da época, a ponto de a Gávea ter sido sede de um quilombo abolicionista.
RH No subúrbio também tinha quilombos?
NL Tinha. A Vila Cruzeiro – do Adriano “Imperador” [jogador do Flamengo] – sediou um quilombo fomentado e incentivado pelo vigário da Penha, que era da pesada, o padre português Ricardo Silva. É uma história muito bonita. Esse padre incentivou a grande festa da Penha. Foi o cara que reformou o templo, trouxe para o Brasil um conterrâneo dele, um grande arquiteto [Luiz Moraes Júnior] que deu o formato atual à Igreja da Penha. E Oswaldo Cruz, trabalhando na região, conheceu esse arquiteto e o convidou para fazer o palácio mourisco da Fundação Oswaldo Cruz. Interessante, não é? Bangu tem uma história muito bonita também. O futebol carioca como um esporte popular nasceu entre os operários da fábrica de tecidos Bangu. Durante muito tempo pensou-se que o Vasco tinha sido o pioneiro dessa abertura aos negros, mas não foi. Muita coisa precisa ser reabilitada para que se tenha uma visão diferente. Até para que os governantes tenham uma visão diferente. O atual prefeito, [Eduardo Paes], não sei se por empolgação por causa de Olimpíadas e Copa do Mundo, está acolhendo algumas idéias, como a de fazer um museu vivo na região de Madureira e Osvaldo Cruz, com a memória do samba de lá.
Quase nada o tira do sério. A exceção: a resistência de alguns setores da sociedade às políticas de inserção social dos negros, sua principal bandeira ideológica. O debate público é acalorado, já rendeu acusações de racismo de parte a parte e foi um dos temas da conversa que tivemos com ele, num agradável encontro no sítio. Nei tem críticas de sobra à forma como a cultura negra é deixada de lado em nome de um “elogio à mestiçagem”, que, segundo ele, camufla a desigualdade racial ainda existente.
Afiado nas argumentações como é afinado na música, este é o resumo de sua formação. Caçula de 13 irmãos, foi o único a completar o primário e ir além: formou-se em Direito e chegou a advogar por oito anos. “Chateado” com a morosidade e a ineficácia do Judiciário, seguiu “naturalmente” o caminho da música, há décadas trilhado em sua família por tios e irmãos. Daí para escritor, livre-pensador, militante social e, agora, debatedor político.
Por onde quer passe, deixa marcas perenes. Do seu “terreiro”, o autor de obras referenciais como o samba “Senhora liberdade” e a Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana saúda a negritude e pede passagem.
REVISTA DE HISTÓRIA O carnaval ainda é uma festa negra?
NEI LOPES O samba é refém do racismo. Primeiro, sofreu um processo brutal de desafricanização. Estabeleceram um gueto para o que seria o samba africanizado, que é exatamente a escola de samba. Só que o gueto das escolas de samba foi desafricanizado também. Como diz um amigo meu, a sociedade brasileira conseguiu um negócio impressionante, que é criar uma cultura negra sem negros. As pessoas, de modo geral, não se dão conta disso. Pensam que escola de samba ainda é uma manifestação de cultura africana. Não é mais. O que havia de substrato africano no samba foi diluído. E o mais doloroso é que não há um carnaval em que esses supostos conteúdos africanos não sejam evocados pelas escolas de samba. Tem sempre uma coisa de orixás, de África, a África distante, esse é o chavão, não é? A África não está distante coisa nenhuma, a África está dentro da gente.
RH Não tem mais nem o samba de terreiro?
NL Não tem, porque a lógica é outra. Antigamente você entrava em um terreiro de escola de samba – que nem se chamava quadra, se chamava terreiro mesmo, exatamente como os da religião africana. Homem não entrava no terreiro, só mulher, como no candomblé, que hoje também não tem mais essa distinção. Até o sentido da roda do samba era o mesmo do candomblé: o sentido anti-horário. Era assim: tinha o puxador cantando, os compositores cantando, a bateria de frente, como é até hoje, mas no centro do terreiro ficavam as pastoras ensaiando. E elas rodavam como rodam as iaôs no candomblé. E tinha um diretor de harmonia no meio, coordenando aquilo. Qual era o objetivo? Era elas aprenderem o samba, fazerem o coro e dançarem de uma forma semelhante à que iriam apresentar no desfile na avenida. Hoje você vai a uma escola de samba e é um grande baile de carnaval. Apenas isso. Não tem sentido simbólico nenhum.
RH O Brasil está mais mestiço?
NL Eu discuto muito essa questão da mestiçagem, porque ela tem sido uma forma de negar a africanidade – “Não vamos discutir isso porque todos são mestiços”. Mas cadê a representação do lado africano dessa mestiçagem nos círculos de poder? Não tem. Quem repete isso com uma virulência cada vez maior é a “direita social”, Ali Kamel [jornalista, editor do jornal O Globo] e sua rapaziada, Demétrio Magnoli, etcétera e tal. O elogio da mestiçagem tem sido um empecilho ao avanço dos movimentos de direitos civis dos negros. E nem sei muito até onde vai esta mestiçagem, que a gente só vê na base da pirâmide. Não vê acima.
RH O embate sobre políticas para afro-descendentes está radicalizado?
NL Todos os que propugnam hoje pela inserção do negro acabam chamados de “racialistas”, para não dizer racistas. Escrevi um artigo no Globo esclarecendo que a exclusão do negro na sociedade brasileira após a abolição se dá basicamente em benefício dos imigrantes. O negro sai de cena, jogado fora, uma abolição com um artigo só – “Declaro extinta a Abolição no Brasil”. “E faz o que com eles agora?”, “Larga aí, eles se viram”. Nisso vêm entrando os imigrantes, recebendo subsídios, uma porção de coisas. Gilberto Freyre diz que os italianos foram os imigrantes mais paparicados da história do Brasil. A minha mulher é descendente de italianos. Citei isso no artigo. Rapaz, o Ali Kamel escreveu dizendo que eu era o [Jean-Marie] Le Pen [político francês de extrema direita] brasileiro. Para se manifestar a favor de qualquer coisa que seja “subversiva”, você tem que arcar com as consequências. Já fui discriminado também, isso é recorrente. Tem uma história muito engraçada da minha juventude lá no Irajá. Tinha um senhor, vizinho nosso, que me viu nascer ali. Quando eu me formei, ele começou a me chamar de doutor. “Doutor Nei, doutor Nei”. Bom, se ele quer chamar, deixa chamar. E quando larguei a advocacia e comecei a me dedicar à música, todo mundo ficou sabendo. Tem um clubezinho lá da vizinhança, fundado pelo meu pai junto com esse senhor, e houve uma divergência política meio acirrada. E esse senhor, no meio de uma discussão, me tratou de maneira meio ríspida, mal-educada. Eu reclamei e ele disse: “Eu o respeitava quando você era um doutor. Você agora é um sambista” [risos]. Engraçado isso, não é? É um preconceito social onde o etnorracial está embutido com tranquilidade.
RH A consciência quanto à origem étnica fez parte de sua formação?
NL Não, isso a gente adquire com o tempo. Inclusive eu fui desestimulado a ter essa consciência pelo fato de meus pais serem muito velhos. Meu pai é de 1888, nasceu antes da Abolição, e minha mãe nasceu em 1900. Para eles, era um assunto que não interessava. Como é que você vai querer pensar em afirmação negra em um contexto totalmente desfavorável, sabendo que isso não levaria a nada naquela época, só levaria para trás? Até bem pouco tempo, era ofensivo você dizer que alguém tinha ascendência africana. Em qualquer dicionário biográfico ou enciclopédia, a circunstância raramente é apontada. A não ser quando o cara se assume ou quando não tem condição de negar. Ou então quando você está querendo derrubar o cara: o Lima Barreto é sempre mostrado como mulato, talvez pelo fato de ter sido um outsider, com problema de alcoolismo e tal. Então, era “o mulato Lima Barreto”. Não era uma coisa que engrandecesse. A minha família não poderia agir de outra forma.
RH Como começou seu engajamento nessa questão?
NL Minha primeira mulher, a mãe do meu filho, era uma negra de família de classe média, com status econômico e social bem diferente do meu. Desde a década de 1950, seu pai e sua mãe frequentavam a questão étnica. Eu aprendi um pouco no convívio, percebi coisas que não percebia. Isso foi fundamental para mim. Conheci muita gente nessa época, negros que trabalhavam em atividades de cultura, o Teatro Experimental do Negro, a Orquestra Afro-Brasileira. Depois veio a coisa política mesmo, já na década de 70. Com a abertura política, pós-ditadura, as entidades negras se organizaram. A coisa tomou vulto, e eu comecei a ter um embasamento mais teórico. Porque não adianta ter só o sentimento; você tem que organizar isso na sua cabeça. Tem uma psicanalista famosa, negra [Neusa Santos Souza], que escreveu um livro chamado Tornar-se Negro. É isso: uma coisa que a gente se torna. É todo um processo até você se conscientizar. Hoje é muito mais fácil, a coisa já vem mais prontinha. A partir dos movimentos negros da década de 70, qualquer criança tem essa percepção.
RH Mas varia de região para região?
NL Muito. Na Zona Sul [do Rio de Janeiro] não existe cidadania em termos de cultura africana, a não ser, possivelmente, em algum núcleo de favela. É um sentimento mais forte no subúrbio, até pela circunstância numérica: você tem muito mais negros no subúrbio do que na Zona Sul. Seropédica tem uma população de 60% de afro-descendentes. Entre os absolutamente carentes, são 80%. Quanto mais afastado do centro, mais tem esse peso. É muito mais fácil, muito mais plausível, um negro suburbano ter consciência da sua identidade étnica do que um negro de outra região.
RH Qual o significado do subúrbio para você?
NL É a matriz da cultura carioca. A primeira freguesia do Rio de Janeiro ocupava um pedacinho do centro da cidade e ia, no máximo, até o atual Campo de Santana. A cidade era aquilo ali e o resto era o resto. Só que nesse resto, primeiro se constitui a freguesia de Irajá, onde, por felicidade, eu nasci, fui criado e tenho família até hoje. De Irajá é que nasceram Jacarepaguá, Campo Grande. Era o celeiro de abastecimento da Corte. Quando eu vou para o Rio, fico recuperando as coisas. Outro dia estava mostrando para a Sonia [sua mulher] um canal fétido, que você cruza quando vai pela Linha Vermelha, quase em frente ao Fundão: é o Canal da Pavuna, feito no século XIX para escoar a produção até o mar. É fundamental saber essas coisas. O que hoje é Gávea, Jardim Botânico, Lagoa, na Zona Sul, eram os subúrbios rurais da época, a ponto de a Gávea ter sido sede de um quilombo abolicionista.
RH No subúrbio também tinha quilombos?
NL Tinha. A Vila Cruzeiro – do Adriano “Imperador” [jogador do Flamengo] – sediou um quilombo fomentado e incentivado pelo vigário da Penha, que era da pesada, o padre português Ricardo Silva. É uma história muito bonita. Esse padre incentivou a grande festa da Penha. Foi o cara que reformou o templo, trouxe para o Brasil um conterrâneo dele, um grande arquiteto [Luiz Moraes Júnior] que deu o formato atual à Igreja da Penha. E Oswaldo Cruz, trabalhando na região, conheceu esse arquiteto e o convidou para fazer o palácio mourisco da Fundação Oswaldo Cruz. Interessante, não é? Bangu tem uma história muito bonita também. O futebol carioca como um esporte popular nasceu entre os operários da fábrica de tecidos Bangu. Durante muito tempo pensou-se que o Vasco tinha sido o pioneiro dessa abertura aos negros, mas não foi. Muita coisa precisa ser reabilitada para que se tenha uma visão diferente. Até para que os governantes tenham uma visão diferente. O atual prefeito, [Eduardo Paes], não sei se por empolgação por causa de Olimpíadas e Copa do Mundo, está acolhendo algumas idéias, como a de fazer um museu vivo na região de Madureira e Osvaldo Cruz, com a memória do samba de lá.